Afrânio Pessoa Castelo Branco, nasceu em Teresina, a 29 de setembro de 1930, sendo o mais velho de uma família de três filhos. Como era de praxe, família abastada como a dele, enviava seus filhos para o Rio de Janeiro, a fim de que pudessem adquirir uma profissão de sucesso e tradição como direito e no caso do artista, medicina. Alguns anos, algumas tentativas, que só resultaram em fracasso e, por uma dessas coincidências, Afrânio se toma de admiração e surpresa quando vê ao longe figuras alegres e coloridas a movimentarem-se no saguão da Escola Nacional de Belas Artes. Curioso, aproxima-se esgueirando-se pelo corredor, e grande foi o impacto que lhe causou todos aqueles alunos, mergulhados no silêncio e sob uma luz intensa que adentrava pelos enormes janelões, a copiarem com afinco aquele jogo de luz e sombra sobre a estátua de pedra que caracterizava, provavelmente, uma Vênus de Milos.
Isso foi, segundo o próprio pintor, meados de agosto do ano 1955. Rapidamente procurou saber dos testes e provas, datas e como elas aconteciam.
No ano seguinte passou em segundo lugar para cursar cinco anos de estudos teóricos, apreensão de técnicas e exploração de materiais; além de mais de três anos eqüivalentes após graduação, onde conquistou as medalhas de prata e de ouro.
Podemos afirmar, inclusive, que durante o último ano de seu curso houve a sua primeira exposição informal, no anfiteatro da Escola Nacional de Belas Artes, quando o professor Henrique Cavalheiro fez uma explanação de três telas do artista, por considerá-lo, entre todos os alunos, o único capaz de transformar-se em um artista reconhecido nacionalmente. Este fato ocorreu para um público considerável de pessoas, durante a aula de encerramento da vida acadêmica do professor cavalheiro, no ano de 1963.
As primeiras produções pictóricas datam da década de sessenta. Sua obra é toda de cunho figurativo e a temática debruça-se sobre duas perspectivas: o profano e o sagrado, às vezes independentes, às vezes interdependentes, num jogo auspicioso de formas e significados.
Na sua primeira fase, que vai de 1960 a 1974, aproximadamente, o artista abusa de suas raízes tomando com base peças anatômicas de ex-votos, figuras tão presentes no cotidiano do povo nordestino, que costuma pagar suas promessas com essa forma de arte popular: mandam-se talhar em madeira, gesso e até mesmo em parafina (mais comum no vizinho Estado do Maranhão) partes do corpo curadas por meios de promessa, como gesto de reconhecimento pela (s) graça (s) alcançada (s). Perguntando o porquê do Afrânio sentir-se atraído por essas imagens ele lembra que “[... ] elas são espontâneas, vindas do nada, de pessoas ignorantes, analfabetas. Mas são puras; (...) eles não passaram por escolas, porque pessoas que passam por escolas ficam condicionadas, bitoladas. Eles não fazem para agradar ninguém, fazem para agradar ninguém, fazem por intuição. Eu odeio muito esse sistema (sistema de criação)”[1].
Como o nordeste é rico no folclore, o pintor toma partido da realidade do seu meio cultural e alinha à temática da sua terra a sua obra onde, com fabulosa criatividade, dar asas á imaginação e criar um universo fantástico através de linhas, formas e composições.
O que se percebe é que o artista, apesar de ter tido uma formação acadêmica de respaldo, não prendeu-se à mesma, pelo contrário, dela tirou proveito apenas de seus “macetes”, pois seus processos criativos têm por fonte fecunda seu povo, suas crenças, donde verte um riquíssimo potencial simbólico, que ele imprime na tela, através das lendas nordestinas em especial as piauienses, com as quais conviveu durante toda a sua infância.
Do ponto de vista técnico as pinceladas não denunciam nenhum volume, as cores são utilizadas dentro de uma ampla gradação tonal, desde os tons mais quentes (vermelhos, amarelos e arroxeados) como os frios (azuis, liláses e verdes). As figuras tanto podem vir enquadradas em primeiro plano, como mergulhadas em fundos paisagísticos enxutos, numa adaptação criativa do processo considerado característico da arte decorativa originada na Idade Média que se nomeia em francês por “cloison” [...] : nada mais é do que fios de metal soldados ‘[...] à moda de tabique que seguem as linhas de um desenho previamente marcado [...], os espaços ou alvéolos assim obtidos são recheados com o material vítreo”.[2]
Neste período o artista faz várias exposições individuais: Galeria Chica da Silva, 1965, Maison de France, 1966 Galeria Varanda-todas no Rio de Janeiro e na Galeria Raimundo Cela, em Fortaleza, no ano de 1963.
Desta mesma fase são os painéis do banco do Estado do Piauí, Navio Gaiola (2 x 4m) e Cabeça de Cuia (2 x 4m), e das Centrais Elétricas do Piauí realizadas nos anos de 1972 e 1973: Sinfonia de Luz (parede norte, 2,28X6,20m); Bumba-meu-boi, Vaqueiro, Zabelê e Miridan (configurando o painel leste com dimensão total de 2,00X 7,75m), todos pintados á óleo. Esses trabalhos trazem uma temática notadamente regionalista, pois foram fixadas em órgãos estaduais e, nada mais coerente do que ressaltar as lendas locais. Inclusive o painel Sinfonia da Luz foi alvo de uma análise realizada pela professora doutoranda Zozilena Fróz, no seu trabalho cujo título é Um exercício prático de semiótica discursiva: a interdiscursividade entre o conjunto de pinturas de Afrânio Castelo Branco e as lendas indígenas piauienses.[3]
Quando vai se findando sua primeira fase um jornal detalha com muita acuidade o transpasse desta fase para a seguinte:
As cores se diluem em largos planos na limpidez e transparência
de seus recursos pictóricos [...] Agora, preocupa-se enfocar personagens do
universo, seus modismos regionais.. Homens, mulheres, casais. Gente
vivida.
[4]
Afrânio já havia participado de duas mostras na Europa sob o patrocínio do Ministério das Relações Exteriores, nos anos de 1969 e 1970, uma em companhia de outro artista piauiense Píndaro Castelo Branco, e a seguinte com mais vinte e sete artistas de todo o Brasil. Inclusive seus grandes painéis em órgãos públicos daqui do Estado são considerados marcos de transição entre o surrealismo mágico – rico de detalhes decorativos, símbolos refinados e repletos de seres fantásticos e apocalípticos “[...] que o Criador se esqueceu de inventar”[5] - e o estudo de figuras isoladas, seres mundanos, sem preocupação de atribuir-lhes nada mais a não ser muita cor e luz.
A passagem da pintura plana para a textura ocorre de maneira gradativa, experimentando todos os efeitos que o pincel poderia lhe oferecer, arriscando que o acaso se instaure, por que ser ousado é preciso.
Esta segunda fase do artista é marcada por um apuro técnico, mais artesanal com experimentação total do uso de vários tipos de pincéis (chatos, redondos, finos e grossos) e a espátula, além de outros materiais que possam oferecer outro leque de texturas: escovas de vários tipos de cerdas, panos, couros e areias. Enfim a textura sobrepõe-se ao desenho, à linha, porém é nos anos que se sucedem que vem o amadurecimento desta fase.
Em 1996, participa com isenção do juri do Salão de Arte Moderna, com a tela Vedete III, em óleo. Na tela, extensas superfícies planas estão lado a lado com pequenas áreas de textura nos cabelos e roupas; o contorno em preto de quadros anteriores, está aqui suavizado num azul que se dissolve na tela. Este comentário data de 1982, onde o crítico já lhe observa o começo do domínio do relevo na tela:

O problema duma certa maneira é como fazer cantar a matéria de superar sua
gravidade, de lhe dar asas, de transformá-la num anjo colorido que segue a
partitura da inspiração. E se já faz muito tempo que Afrânio entrou nessa luta,
podemos afirmar hoje que ele dominando a matéria-prima. Por isso que a liberdade
aparente que encontramos nos seus quadros é no fundo o resultado dum jogo de
forças disciplinadas pelo artista [...] porque Afrânio é desses artistas
exigentes consigo mesmo, magnificamente insatisfeito e que além duma inspiração
nata [...] nunca deixa de seu auto-educar através duma luta permanente contra a
matéria, numa conquista das cores e da composição.
[6]

Afrânio considera os anos de 1987 a 1994, como um período de transição, de aprimoramento pictórico, onde todas as cores são possíveis; e há uma inversão agora: maiores áreas de textura com pequenas zonas planas que geralmente encontram-se representando corpos nus. A linha de contorno se mantém agora densa, marcante, quase como um brincar de recorte e colagem usando apenas as várias camadas de tinta á óleo. Porém, à medida que os anos vão lhe aproximando da atual fase, percebemos a evolução progressiva da textura à transforma em materismo. Materismo nada mais é do que uma corrente da arte contemporânea que privilegia a matéria em si mesma, sendo que sua característica mais marcante é acrescentar á espessura da pasta pictórica elementos heteróclitos: serragem, gesso (que é o mais explorado pelo artista), areia ou pó de mármore.[7]
Concomitante a esse aspecto, outro não menos relevante também se observa: paulatina redução da escala cromática a ser utilizada nas pinturas das obras, detendo-se na gradação tonal entre o vermelho e o preto, que supervaloriza o materismo presente nas telas de Afrânio produzidas a partir de 1995, quando ele se inicia numa terceira fase, a atual, considerada como de aprimoramento estilístico.
São desta fase todas as obras que estão sendo pintadas para uma importantíssima exposição a se realizar em 2003, no Estado de São Paulo, na Galeria Brasiliana.

[1] PESSOA, Afrânio C. Branco. Depoimento concedido a Maria de Fátima e maria Helena Costa. Teresina, Novembro, 2002.
[2] GIL, Santiago Alcoba. Dicionário das Artes Decorativas. IN: ARTES Decorativas III. Lisboa: Ediciones del Prado, 1997. P. 76.
[3] COSTA, Zozilene de Fátima Fróz. Um exercício prático de semiótica discursiva: a interdiscursividade entre o conjunto de pinturas de Afrânio castelo Branco e as lenda indígenas piauienses. São Paulo, 2002 mimeo.
[4] Afrânio no Decanto de Ouro Preto. O Povo, Fortaleza, ano ______, nº _____ pg. ___ , 20 de setembro de 1975.
[5] IDEM, ibidem.
[6] CHAUDANNE, Gilbert. Afrânio ou a transparência do primeiro olhar. O Estado Teresina, Domingo / Segunda, 05/06 de setembro de 1982.
[7] PESSOA, Afrãnio C. Branco. Depoimento concedido a Maria de Fátima e Maria Helena. Teresina, novembro, 2002.